Conto - "Ana"



Ana tentava manter uma postura correcta embora não soubesse muito bem o que isso era.

Sentadita na enorme cadeira desconfortável apenas mexia os olhos assustados mas enxergando tudo que podia. Tentava não mostrar o seu receio por trás dum leve sorriso complacente, pois tudo que não conhecemos deixa-nos sempre desconfiados. Aprendera a verificar tudo e a suspeitar do que não conhece; a esconder-se e ficar imóvel ao menor sinal de perigo. E era esse o caso.

Mas tudo á sua volta era estranhamente maravilhoso.
Encontrava-se numa sala paradisíaca, imaculadamente branca e limpa. No tecto uma longa chama de luz quente descia sobre si. No chão um piso morno esmalte que tinha medo de pisar. Parecia impossível ter uma sala tão limpa naquele local tão cheio de terra e pó. Na realidade bruxedo era a única ideia que lhe vinha à cabeça para justificar o que via. Nada parecia real, nada pertencia ao seu pequeno mundinho. Por isso se encolhia; com aquele medo instintivo de que tudo aquilo a afectasse.

A seu lado, de pé, uma bela e alta senhora olhava-a com um belo sorriso confiante. Desde que pegou nela que a tratou muito bem; bem de mais. Deu-lhe banho com água que só deveria servir para beber. Usou algo parecido com sabão que só deveria ser usado para desinfectar coisas. Encharcou-a de cheiros lindos de sentir mas que tresandam a falsidade. Falava suavemente como quem canta, e lentamente como quem encanta. De facto não a conhecia de lado nenhum mas a sua bondade e carinho tentavam sempre a incentivar; a algo que não queria. Queria era ir-se embora, para juntos dos seus. Mas algo ali chamava por ela.

Pois bem, á sua frente tinha uma mesa gigante; tão grande que parecia chamar por ela.
Era propositadamente larga de mais para o pouco que albergava. Um único prato branco rodeado de espetos, uma malga alta e transparente; e a seu lado uma estranha forma vermelha com riscas que fazia pequenas bolinhas no ar.
Mantinha-se como uma estátua pois não sabia o que pensar; muito menos o que fazer. Mas da sua frieza emanava uma infinita admiração por toda a novidade. Tentava resistir com as poucas forças que tinha, mas sentia-se irremediavelmente atraída por aquele feitiço.

Era divinal o que sentia: aquele suculento prato prostrava-se á sua frente. Como a mais bela das bandejas, servia-lhe uma montanha de batatas fritas até as perder de vista. No centro, como um potente vulcão em actividade, reinava um enorme e fumegante pão com carne explodindo de cores e aromas na sua direcção.
Os seus sentidos devoravam tudo com a fome. Mas a razão e o medo impediam-na de se mexer.
Na sua curta vida nunca vira um copo sem ser de madeira ou barro fresco, muito menos com aquela ilusão de transparência; coisa incrivelmente estranha. E o que estava ao lado: um misterioso e irritante cilindro vermelho garrido com ornamentos brancos e coisas escritas. Na sua cabeça lia “Não mexer – Venenoso”, mas o constante borbulhar intrigava-a e incitava-a a espreitar; a provar, saborear…

Mas não podia, tinha de resistir aquele encantamento. Tudo lhe parecia saborosamente bem e diabolicamente mal. Estava drogada com toda aquela amálgama de sentimentos. Já nem sabia se estava a morrer de fome ou se era os sentidos que a enganavam de propósito.
Pois os olhos cheiravam mil especiarias, o nariz ouvia o crepitar das batatas fritas, e os ouvidos viam o fumo quente que tudo aquilo emanava. Tentava raciocinar, manter-se em alerta e consciente dos seus actos. Mas curvava-se mediante a força das circunstâncias: aquela magia era tão potente que dificilmente a superaria.
É que de facto nunca na vida experimentara comida cozinhada. Nunca precisara pois na floresta alimentava-se do que a natureza lhes dava. Aliás era muito mau estragar o que a Mãe Natureza lhes proporcionava. Tinha tudo que era necessário em abundancia suficiente para não o fazer. No entanto ali estava um monte de comida adulterada como nunca imaginara, nem nunca sentira necessidade de comer; até hoje.

Mantinha-se hirta com todas as suas poucas forças. Representava uma nobre e forte tribo de gente humilde mas orgulhosa. Estava ali com um propósito muito sólido.
Iria honrar a sua gente; satisfazer o último pedido dos seus pais:

“Lembra-te dos nossos costumes e honra as nossas tradições.”

Pois para que eles sobrevivessem tiveram que se separar. Num último acto de desespero seu pai trocou-a por dinheiro; sua mãe com lágrimas a largou. Eles ficaram no seu vale; ela foi levada para o novo mundo.
Como uma fria escultura de barro ali permanecia; sulcada pela fome mas orgulhosa da sua atitude.
Sozinha ali estava, sem o apoio da sua família e sem o conforto do seu lar. Apenas acompanhada pela bela freira, que tudo lhe fazia para a converter, enfrentava agora o monstro da Civilização. Aquele precipício moderno que sempre evitaram, que sempre rejeitaram. Era um local maléfico onde se desperdiça tudo dá trabalho ter, se deita fora tudo que deixou de ter interesse e se despreza todos os que não nos traz proveito.
Sentia-se desfalecer, mas resistia às maravilhosas tentações que a cidade tem para oferecer.
E altiva, de queixo erguido, como verdadeira e única herdeira de uma longa tribo; assim iria permanecer… Até á sua própria extinção…

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